"Tolerar a injustiça é relativamente aceitável, condenável é a intolerância da justiça". Leandro Francisco

domingo, 13 de março de 2011

Tributação e desigualdade



Se a política tributária brasileira é e foi condicionada à transferência de renda do conjunto da população para saciar o capital financeiro e a banca nacional e internacional, para o futuro precisa ser entendida como um instrumento imprescindível de combate à pobreza e de redução das desigualdades sociais
por Fátima Gondim, Marcelo Lettieri
É bastante comum depararmos com a informação de que nossa carga tributária é elevada e nosso sistema tributário é injusto. De forma geral, todos se acham injustiçados pelo que pagam de impostos e exigem reformas. As críticas à alta carga tributária brasileira, no entanto, passam ao largo da discussão sobre a forma de arrecadação desses valores. Isto é, não se discute de onde estamos extraindo os recursos necessários ao financiamento do Estado, quem recebe do governo esses recursos e se a extração e a distribuição estão sendo feitas de forma a reduzir as desigualdades.
De onde viemos?
Até meados da década de 1960, o sistema tributário brasileiro não era eficiente, nem progressivo. Constituía-se de um amontoado de impostos seletivos sobre consumo e selos, ao lado de um conjunto complexo de tarifas e restrições ao comércio internacional. O imposto sobre a renda era pouco progressivo na prática e recaía quase que inteiramente sobre os trabalhadores do setor formal, sujeitos à retenção na fonte, enquanto os cidadãos mais ricos não encontravam dificuldades para escapar às suas obrigações tributárias.
A partir da segunda metade da década de 1960 e até o final da de 1980, promovemos a instituição e expansão da tributação sobre o valor agregado (principalmente via ICMS), reduzimos os tributos sobre comércio exterior, fortalecemos a administração tributária, mas deixamos a redução das desigualdades sociais em plano secundário.
No início da década de 1990, a onda neoliberal “quebrou” em praias brasileiras, recomendando que a carga tributária fosse distribuída sobre base mais ampla, o que, segundo seus defensores, exigia um imposto de renda menos progressivo e a elevação da contribuição dos impostos sobre o consumo. Nesse contexto, defendiam que a política tributária não devia ser utilizada como instrumento de política social, sob pena de reduzir a eficiência da tributação.
A partir de 1995, a política tributária foi redesenhada para beneficiar o processo de mundialização do capital financeiro, de forma a atraí-lo e mimá-lo do ponto de vista fiscal (as reformas do pacote neoliberal propuseram reformas administrativas, visando reduzir os custos das administrações tributárias e do cumprimento das obrigações pelas empresas, principalmente com o objetivo de incentivar o investimento estrangeiro).
Para reduzir a tributação do grande capital e, ao mesmo tempo, garantir a arrecadação necessária ao ajuste fiscal em uma economia debilitada, o Brasil fez a opção preferencial por tributar de “forma fácil” e “invisível”, via tributos sobre o consumo, atingindo, sobretudo, o “Brasil de baixo”, como dizia o poeta Patativa do Assaré. E, assim, foram construídos os tão aclamados “recordes de arrecadação”: aumentando a tributação dos mais pobres e reduzindo a dos mais ricos.
Vejamos as benesses para o “andar de cima”, já no início do primeiro governo FHC: redução da alíquota do Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas – IRPJ, das instituições financeiras, de 25% para 15%; redução do adicional do IRPJ de 12% e 18% para 10%; redução da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL, de 30% para 8%, posteriormente elevada para 9%; redução da base de cálculo do IRPJ e da CSLL ao permitir a dedução dos juros sobre capital próprio; isenção do imposto de renda sobre remessa de lucros e dividendos ao exterior, dentre outros. Além disso, a liberalização financeira internacional abriu novas oportunidades para a fuga de capitais e evasão fiscal por parte das elites, acentuando a desigualdade.
Convém esclarecer o que é a dedução dos juros sobre capital próprio e a quem beneficia. A inovação, criada em dezembro de 1995, possibilita às empresas distribuir juros aos seus sócios e acionistas, reduzindo com isso os tributos a serem pagos. A justificativa para sua criação: a legislação anterior favorecia o endividamento externo da empresa e, para reverter esse quadro, era necessário incentivar o seu financiamento pelos sócios.
Com o país praticando uma das maiores taxas de juros do mundo, as empresas necessitavam de incentivos para usar o próprio capital, em vez de contrair empréstimo externo? Com certeza, não! E como se dá essa operação? Independentemente da ocorrência da operação de empréstimo do sócio para a empresa, esta paga os juros aos sócios e acionistas, tributando-os em apenas 15% (IRPJ), quando deveria pagar 34% caso não houvesse o “incentivo” (IRPJ, adicional e CSLL). Isso beneficia sobremaneira as grandes empresas capitalizadas e lucrativas, sobretudo os bancos, que fizeram e ainda fazem a festa. Não é sem razão que o saudoso tributarista Osires Lopes Filho tenha denominado o artifício de “usura heterodoxa”.
Para o “Brasil de baixo”, foi cobrada a conta do ajuste fiscal imposto pelo Fundo Monetário Internacional – FMI, em 1998. O governo federal lançou o pacote fiscal, incluindo medidas para aumentar a arrecadação e assegurar o superávit primário, em 1999, de R$ 312 bilhões (3,1% do PIB): majoração da alíquota da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – Cofins, de 2% para 3%; ampliação da base de incidência do PIS/Pasep e da Cofins; elevação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira – CPMF (atualmente extinta), de 0,20% para 0,38%. Tudo incidindo sobre o consumo!
Mas o que representa para a população mais pobre esse aumento brutal na tributação sobre o consumo? Como as pessoas de baixa renda consomem toda a renda disponível (não há poupança) e compram basicamente gêneros de primeira necessidade, o aumento dos preços atinge de forma “vital” esse segmento. Por isso, a regressividade da estrutura tributária é sentida direta e especialmente pelas classes de renda mais baixa: em 1996, a carga tributária indireta sobre famílias com renda de até dois salários mínimos representava 26% de sua renda familiar; em 2002, pulou para 46%. Para famílias com renda superior a 30 salários mínimos, a carga indireta era de 7,3%, em 1996, e de 16% em 2002, conforme dados do IBGE.
Vale lembrar que também no Imposto de Renda, direto e progressivo, houve confisco. Mesmo com a participação dos salários decrescendo em relação à renda nacional, a arrecadação do imposto sobre a renda do trabalho cresceu 27%, em termos reais, de 1996 a 2001, devido ao aumento de alíquota de 25% para 27,5% e ao congelamento da tabela progressiva do Imposto de Renda Pessoa Física – IRPF.
Enfim, o “modelito” da regressividade que assolou e deteriorou nosso espectro tributário na segunda metade da década de 1990, em especial após o forte ajuste fiscal, é démodé, mas permanece até hoje um Robin Hood às avessas.
Onde estamos?
Analisando a arrecadação tributária, no Brasil, por bases de tributação (consumo, renda, patrimônio, folha de salários e operações financeiras), podemos observar quais setores têm contribuído mais com o financiamento do Estado. O que se observa é uma tributação bastante concentrada no consumo (15,2% do PIB, em 2008), seguida pela renda (7,8%) e folha de pagamentos (6%), enquanto a tributação sobre operações financeiras (0,7%) e sobre o patrimônio (1,1%) é bastante reduzida.
Ou seja, as reformas tributárias recentes têm acentuado uma anomalia do Brasil: aumento da tributação sobre o consumo em detrimento da tributação da renda, agravando o quadro de desigualdade ou, no mínimo, não permitindo uma maior redução desta.
Se observarmos o que acontece em outros países, em comparação ao Brasil, constatamos o seguinte: aqueles com renda per capita mais elevada tendem a tributar mais a renda que o consumo. A arrecadação de tributos previdenciários é muito importante nos países de renda mais elevada (provavelmente em virtude da maior expectativa de vida), chegando a ser a principal fonte de receita na Alemanha, França, Espanha e Japão. A arrecadação sobre o consumo, no Brasil, é muito alta, mesmo quando comparada a países com renda semelhante (Argentina, Chile e Turquia). Esta arrecadação chega a superar a soma da arrecadação sobre a renda e a folha de pagamentos.
E para que (ou quem) pagamos impostos?
A resposta a esta pergunta, e sua visibilidade sempre tão questionada pelo cidadão e pela opinião pública, é fator decisivo nos caminhos da cidadania fiscal e na busca por trazer ao debate segmentos da sociedade historicamente alheios ao mundo fiscal.
O comunicado da Presidência do Ipea, datado de junho de 2009, analisa o destino da carga tributária, destacando os principais programas e ações do governo federal, em termos de volume de recursos e número de beneficiários.
O estudo compara o que foi recolhido aos cofres públicos e o que foi destinado aos programas de governo nas áreas de saúde, educação, previdência e assistência social, desenvolvimento agrário, dentre outras. Ressalta, também, dentre as despesas do governo, o montante destinado ao pagamento dos juros da dívida pública.
Apesar da carência de estudos nessa área em termos desagregados (por família e faixa de renda), alguns dados, mesmo globais, ressaltam a expressiva concentração de renda decorrente da política de juros altos.
Segundo o Ipea, o montante destinado ao pagamento de juros da dívida pública recebeu, em 2008, somente do governo federal, 3,8% do PIB, enquanto o Programa Bolsa Família, que complementa a renda de 12 milhões de famílias, custou ao governo federal 0,4% do PIB: dez vezes menos!
O financiamento do Programa Bolsa Família exige arrecadar o equivalente a um dia e meio de trabalho do contribuinte. Já para financiar a ciranda financeira, União, estados e municípios destinam, em conjunto, 5,6% do PIB (valores de 2008), ou seja, 20 dias e meio de trabalho do cidadão brasileiro; quase um sexto de toda a carga tributária arrecadada em 2008.
Comparado ao que se destina à saúde e educação, a “derrama” dos cofres públicos – para patrocinar escandalosos ganhos aos rentistas – fica ainda mais aberrante. Para o SUS, em 2006, foram destinados 3,6% do PIB, ou 13 dias de trabalho do contribuinte. Para a Educação, 4,3% do PIB, ou 15,7 dias.
Mas o que não é dito ao contribuinte brasileiro? Que ele trabalha quase 3 semanas para pagar as despesas com elevadas taxas de juros para a classe de alta renda! E que essa monumental transferência aos 20 mil clãs de alta renda, que se beneficiam da dívida pública, representa uma transferência do Estado infinitamente maior do que recebem milhões de famílias de baixa renda (Marcio Pochmann – Agência Carta Maior, 2005).
O custo social da política fiscal foi posto a nu, já em 2002, no artigo “Tudo azul: do outro lado da moeda” (Contraponto, 2002). À pergunta: para onde foi a arrecadação federal, que passou de R$ 81 bilhões em 1995 para R$ 192 bilhões em 2001? A resposta: engordou os ratos na despensa do endividamento garantido pelo Banco Central.
Sem maiores rodeios, constata-se que a política tributária foi condicionada à transferência de renda do conjunto da população para saciar o capital financeiro e a banca nacional e internacional. A relação receita/PIB saiu de 12,6% em 1995 para 17,1% em 2002! A relação juros/PIB salta de 2,9% para 9% no mesmo período.
Para onde vamos?
Estamos, basicamente, diante de três alternativas para as próximas reformas tributárias: podemos ampliar e aprofundar as reformas do pacote neoliberal; promover ajustes no modelo neoliberal, mas sem efetivamente promover uma tributação redistributiva; ou, finalmente, engajarmo-nos em um movimento em direção à maior progressividade do sistema tributário, como condição primeira para uma efetiva redução das desigualdades.
Depois da crise mundial de 2008/2009, há poucos que apostariam na ampliação das reformas do pacote liberal, mas o que temos visto nos debates recentes, incluindo o eleitoral, é uma tentativa mal disfarçada de promover meros ajustes no modelo neoliberal, sem redistribuição efetiva do ônus tributário. E essa tem sido a tônica das principais propostas de reforma tributária: simplificação a qualquer custo, desonerações do capital, desoneração da folha de pagamentos, sem uma avaliação crítica dos efeitos sobre o financiamento da Previdência Social e a regressividade do sistema, entre outras.
Ninguém se atreve a incluir no debate a necessidade de novos movimentos em direção à maior progressividade, o que implicaria repensar, por exemplo, a tributação sobre o consumo de artigos de luxo (como fez o Equador com a criação do Impuesto a los Consumos Especiales, em 2008); os impostos sobre a propriedade, especialmente sobre a terra nua, com a sua utilização como instrumento de reforma agrária; os impostos sobre grandes fortunas e a necessidade de maior progressividade na tributação sobre a renda, Alcançando efetivamente a renda do capital.
É preciso ter a coragem de reconhecer que nas próximas reformas, ainda não será possível abrir mão de receitas, que o reforço da tributação da renda dependerá também da capacidade da administração tributária do país e que é preciso incorporar ao sistema tributário brasileiro não somente o setor informal, mas também e, principalmente, a burguesia capitalista.
Também não pode ser desconsiderado o risco que é fazer uma reforma tributária sem antes ter feito uma reforma política. Nesse ambiente, a chance de criar um sistema ainda mais regressivo é muito grande, pois a probabilidade de os grandes financiadores de campanha serem ainda mais beneficiados é altíssima. Como diria o professor Richard Bird: “os países latino-americanos não têm sistemas fiscais mais igualitários porque a população politicamente relevante é pequena e rica, e ela gosta das coisas como estão”.
Em suma, o Brasil deve decidir o que quer do seu sistema tributário, estabelecendo objetivos específicos, que, certamente, estarão em conflito uns com os outros. Esses conflitos e dilemas devem ser debatidos e equilibrados. Há muitas questões a ser tratadas, e embora não seja fácil responder a todas elas, precisamos fazer as escolhas agora. E uma delas é fundamental: o Sistema Tributário Nacional deve ser instrumento imprescindível de combate à pobreza e de redução das desigualdades sociais.


Fonte: LeMonde Diplomatique Brasil 
Fátima Gondim
auditora fiscal da Receita Federal, especialista em Tributação

Marcelo Lettieri
é auditor fiscal da Receita Federal, doutor em Economia pela UFPE

ESPECIAL - Aborto: o paradoxo entre o direito à vida e a autonomia da mulher

Perda do feto em razão de acidente, em casos em que se verifica má-formação congênita, clandestinos, causados por medicamento, violência ou de forma espontânea – a verdade é uma só: o aborto existe, e muitas brasileiras sofrem pela falta de amparo nos serviços públicos de saúde. A despeito da falta de assistência governamental, a gestação é interrompida independentemente de leis que as proíbam ou de punição por parte do Judiciário.

Segundo dados da organização não governamental que cuida do direito das mulheres Ipas Brasil, em parceria com o Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), denominada “A magnitude do aborto no Brasil: aspectos epidemiológicos e socioculturais”, um milhão de abortos são realizados todos os anos. A pesquisa foi realizada em 2007 e esse número é contestado por segmentos contra o aborto. O estudo aponta que a curetagem é o segundo procedimento obstétrico mais realizado na rede pública.

O aborto, contudo, é fato e, geralmente, feito da pior maneira possível. Na Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), tramita um habeas corpus em que a Defensoria Pública pede o trancamento de investigação contra centenas de mulheres suspeitas de fazer aborto em uma clínica de planejamento familiar em Mato Grosso do Sul. A defesa alega violação do sigilo médico, já que foram apreendidos os prontuários sem anuência do profissional. A relatora é a ministra Laurita Vaz (HC 140123), que está com o parecer do Ministério Público Federal sobre o caso. Ainda não há data prevista para julgamento.

Além da constatação da prestação do serviço médico inadequado e até mesmo irregular, o tema gera um amplo debate moral, colocando como contraponto o direito absoluto da vida do feto e a autonomia da mulher em relação ao próprio corpo.

Crime contra a pessoa
A legislação penal brasileira só autoriza a prática do aborto em casos de estupro ou nos casos que não há outro meio para salvar a vida da mãe. A matéria está disciplinada pelos artigos 124 a 128 do Código Penal, tipificando seis situações. No Brasil, o ato é classificado como crime contra a pessoa, diferentemente do que ocorre em alguns países que o classificam como crime contra a saúde ou contra a família. A lei brasileira prevê pena de um a dez anos de reclusão para a gestante que recorre a essa solução.

Para o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, que compõe a Quinta Turma do STJ, a melhor maneira de evitar uma gravidez indesejada é investir nos contraceptivos, mesmo aqueles de emergência. “Sou a favor de todo e qualquer método, principalmente aqueles que evitam a proliferação de doenças sexualmente transmissíveis”, diz ele.

O ministro acredita que a solução da interrupção da gravidez em casos de violência deve ser conduzida pela mulher, mesmo que ela seja casada ou que tenha um parceiro estável. “A mulher é a grande responsável pela maternidade”, constata, “pois é ela quem alimenta o filho durante a fase intrauterina, e quem tem a responsabilidade do cuidado com o filho”.

O ministro é contra o aborto e acredita que é um erro tratar a prática como um método contraceptivo. Ele afirma que as autoridades governamentais deveriam incentivar a distribuição de preservativo ou a injeção de pílulas do dia seguinte. “É muito menos traumático para a mulher e para a sociedade”, conclui.

Violência contra a mulher
Segundo pesquisa da socióloga, Thais de Souza Lapa, na tese “Aborto e Religião nos Tribunais Brasileiros”, de um universo de 781 acórdãos pesquisados entre 2001 e 2006, 35% envolvem situações de violência contra a mulher. Na seara dessa temática, o STJ analisou o caso em que um morador de São Paulo desferiu, em 2 de abril de 2005, facadas na esposa, que estava no quinto mês de gestação, e em mais duas pessoas, sendo uma maior de 60 anos (HC 139008).

O réu respondeu, entre outros, pelo crime de provocar aborto sem o consentimento da gestante, o que, pela legislação penal, acarreta a pena de três a dez anos de reclusão. A defesa ingressou no STJ contra a inclusão da causa de aumento da pena na pronúncia pela Justiça estadual, sem que houvesse menção a esta quando da denúncia.

Segundo o relator, ministro Jorge Mussi, a qualificadora pode ser incluída na pronúncia, ainda que não apresentada na denúncia, uma vez que não provoca qualquer alteração do fato imputado ao acusado. Pela lei penal, no homicídio doloso, a pena é aumentada de 1/3 se o crime é praticado contra menor de 14 anos ou maior de 60 anos.

Relações extraconjugais
A violência contra a mulher pode surgir também de uma relação extraconjugal, em que o parceiro se ressente de uma gravidez indesejada. Entre 2008, um morador de Alegrete (RS) teria matado a amante com golpes no crânio e ocultado o cadáver. Ele exigia que ela tomasse medicamentos abortivos, mesmo já estando em fase avançada da gestação.

Seis habeas corpus e um recurso especial foram apresentados em defesa dele, além de um recurso especial interposto pelo Ministério Público gaúcho. No último habeas corpus (HC 191340), apresentado em dezembro de 2010, a defesa buscava a liberdade do acusado, alegando excesso de prazo da prisão.

Mas o relator, ministro Og Fernandes, da Sexta Turma, negou a liminar. Ainda falta a análise do mérito do pedido, o que deve ser feito ainda este ano. Tanto o recurso especial apresentado pelo acusado, quanto o apresentado pelo MP/RS (REsp 1222782 e REsp 1216522, respectivamente) ainda serão analisados. O ministro Og Fernandes também é o relator dos dois casos.

Outro caso de violência contra a mulher resultou na condenação de Jefrei Noronha de Souza à pena de cinco anos de reclusão. Ele respondeu pelas práticas de aborto não consentido e sequestro qualificado (HC 75190). O réu mantinha um relacionamento extraconjugal e, ao saber da gravidez da amante, simulou um sequestro com amigos na cidade de Taubaté (SP) com o fim de eliminar a criança. Consta da denúncia que os sequestradores introduziram medicamentos na vagina da vítima e depois, com a expulsão, jogaram o feto no vaso sanitário e acionaram a descarga.

A defesa alegou que o crime de aborto, por si só, já representava grave sofrimento moral e físico, de modo que o juiz não podia aplicar a qualificadora do parágrafo 2º do artigo 148 do Código Penal. Esse artigo trata da agravante do crime de sequestro e prevê pena de reclusão de dois a oito anos a quem impuser grave sofrimento físico ou moral à vítima. O objetivo da defesa era aplicar ao caso o princípio da consunção, segundo o qual se houver um crime-meio, de sequestro, ocorre absorção pelo crime-fim, aborto.

O Tribunal local entendeu que os delitos de sequestro e aborto visam a proteger bens jurídicos distintos. O primeiro, a liberdade individual, e o segundo, a própria vida. A Sexta Turma não apreciou a tese em virtude de já haver trânsito em julgado da decisão do Júri e de envolver matéria de prova, o que é vedado pela Súmula n. 7 do STJ.

Fornecimento de medicação

Não só a gestante, mas também a pessoa que instiga ou auxilia no aborto responde judicialmente pelo crime, inclusive quem fornece a droga. É o caso do teor de um agravo em que pesou sobre o réu a acusação de ter praticado o crime sem o consentimento da gestante (Ag 989.744), o que acarreta uma pena de um a quatro anos de reclusão. O aborto clandestino geralmente ocorre em clínicas médicas e com o apoio de conhecidos, e usualmente com a ingestão de medicamentos, o mais comum, o Cytotec.

Um caso de aborto provocado por terceiros foi o relativo a um julgado de São Paulo, em que o réu vendeu esse medicamento sem registro (HC 100.502). O Cytotec foi lançado na década de 70 para o tratamento de úlcera duodenal. No entanto, vem sendo largamente utilizado como abortivo químico. Sua aquisição se faz via mercado negro ou por meio de receita especial. A questão analisada pelo STJ remetia à aquisição irregular.

A defesa buscava anular a sentença de pronúncia com o argumento de que não foi comprovado que o uso do medicamento teria causado o aborto. A Turma entendeu que o crime se configura com a própria venda irregular, de forma que não é necessária a perícia para verificação da qualidade abortiva da droga.

A lei também apena não só o fornecedor, mas os profissionais que auxiliam a prática do aborto, com base no artigo 126 do Código Penal. Um ginecologista foi preso em flagrante em sua clínica no centro de Porto Alegre (RS), em junho de 2008, e respondeu por aborto qualificado por quatro vezes, aborto simples, também por quatro vezes, tentativa de aborto e formação de quadrilha. Ele pedia no STJ o relaxamento da prisão cautelar, mas, segundo a Corte, os reiterados atos justificaram a prisão.

Bebês anencéfalos
Os casos que trazem maior polêmica ao Judiciário são os de anencefalia e má-formação do feto. A anencefalia consiste em uma má-formação rara do tubo neural que ocorre entre o 16° e o 26° dia de gestação e se caracteriza pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana. A causa mais comum é, supostamente, a deficiência de nutrientes, entre eles o ácido fólico. Também diante da falta de vitaminas, há dificuldade na formação do tubo neural.

A ministra Laurita Vaz reconheceu no julgamento do HC 32.159 que o tema é controverso, porque envolve sentimentos diretamente vinculados a convicções religiosas, filosóficas e morais. “Contudo, independentemente de convicções subjetivas pessoais, o que cabe ao STJ é o exame da matéria sob o enfoque jurídico”, assinalou a ministra. Para ela, não há o que falar em certo ou errado, moral ou imoral.

O habeas corpus discutia a autorização para o aborto que havia sido dada pela Justiça do Rio de Janeiro. Para a ministra Laurita Vaz, o Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizadoras do aborto, previstas no artigo 128 do Código Penal, esse caso. “O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo legislador”.

Segundo o ministro Napoleão Nunes, a vivência religiosa ou filosófica interfere nos julgamentos, pois, em princípio, elas influenciam a conduta humana. O ministro entende que a questão da anencefalia não deve ser entendida sob a perspectiva puramente religiosa, mas sob uma perspectiva médica, e cada caso é único. “Não se pode estabelecer uma regra única de solução, ainda mais porque há questões em aberto”, diz.

Perda do objeto
Nos tribunais superiores, segundo análise da socióloga Thais de Souza, entre os anos de 2001 e 2006, não havia decisões favoráveis em sua pesquisa para o pedido de interrupção de gravidez no caso de anencefalia, pois ocorria perda de objeto. O bebê já tinha nascido ou a gravidez já estava bastante adiantada, dificultando a análise. A jurisprudência do STJ confirma essa constatação. Em 2006, três acórdãos perderam o objeto pelas razões enumeradas (HC 54317, HC 47371 e HC 56572).

Em um dos habeas corpus, um casal de São Paulo pedia para interromper a gravidez em decorrência de anencefalia. A mulher tinha ultrapassado a 31ª semana de gestação e passados 50 dias da impetração junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), ainda não havia uma decisão de mérito. O STJ considerou que, devido ao fato de a gestação estar estágio bastante avançado, deveria ser reconhecida a perda de objeto da impetração.

O relator, ministro Arnaldo Esteves Lima, no entanto, ponderou que, havendo diagnóstico médico definitivo que ateste a inviabilidade de vida após a gravidez, a indução antecipada do parto não tipifica o crime de aborto, uma vez que a morte do feto é inevitável, em decorrência da própria patologia. A Quinta Turma entendeu que a via do habeas corpus é adequada para pleitear a interrupção da gravidez, tendo em vista a real ameaça de constrição da liberdade da mulher.

Fonte: STJ

Maioria de parques tem área irregular

De 251 unidades de conservação federais, 188 ainda abrigam terra particular, somando 20 milhões de hectares

Extensão equivale ao Estado do Paraná e faz com que objetivos de preservação acabem não sendo cumpridos

Dados do ICMBio (Instituto Chico Mendes para a Conservação da Biodiversidade) indicam que três em cada dez hectares que integram unidades de conservação federais do país não são públicos.
O órgão, responsável pelos parques, reservas e florestas direcionadas à preservação, sequer sabe ao certo de quem são essas áreas.
Das 251 unidades de conservação cujo território deve ser obrigatoriamente público, 188 ainda têm proprietários particulares em seu interior. Vários deles são ocupantes legítimos, que não foram indenizados pelo governo para sair de tais locais.
Essas 251 áreas protegidas somam 65,4 milhões de hectares. Desses, o governo não tem a documentação de 30,8%, ou 20,2 milhões de hectares, extensão equivalente ao Paraná.
Na prática, essa situação impede as unidades de cumprirem plenamente seus objetivos de conservar biodiversidade e paisagens naturais.
Isso porque o governo não pode dispor dessas áreas. Se um pecuarista tiver uma fazenda dentro de uma delas, por exemplo, pode continuar produzindo (desde que não amplie sua atividade).
No parque nacional da Serra da Bocaina, entre o Rio e São Paulo, há uma centena de proprietários que não só cultivam suas áreas como usam fogo para limpá-las.
No parque da Serra da Canastra, que abriga as nascentes do rio São Francisco, há fazendeiros e mais de 50 mineradoras. O interesse da população e das empresas levou parlamentares de Minas Gerais a propor a exclusão de 50 mil hectares do miolo do parque; o governo aceitou cortar apenas 9.000.
"A regularização fundiária sempre foi um defunto no armário, no qual ninguém quer mexer", disse à Folha o presidente do ICMBio, Rômulo Mello. "O passivo é enorme. Como eu vou dizer para não queimar a Bocaina se tem proprietários lá dentro que usam práticas preconizadas pela agronomia brasileira?"

NA CANETA
O passivo começa quando a unidade de conservação é criada. Em vez de já pagar pela desapropriação de todas as áreas destinadas, o governo primeiro publica o decreto criando a unidade e só depois busca a regularização.
Se o proprietário discordar dos valores propostos, pode reclamar na Justiça. A Advocacia-Geral da União está listando todas as ações que discutem as desapropriações.
A identificação da propriedade das terras é por exclusão. Feito o desenho das unidades, o governo busca documentos que identifiquem as terras públicas. O que sobrar é "presumivelmente privado", segundo o ICMBio.
A identificação é complicada, pois as maiores unidades ficam na Amazônia Legal. "E, na Amazônia, ninguém sabe quem é o dono da terra", diz Adalberto Veríssimo, pesquisador do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia).
O órgão diz que pretende fazer ofensiva para adquirir as áreas. Para isso, capacitou 23 técnicos para vistoriar os imóveis desapropriados. Há um ano, eram apenas duas pessoas fazendo essa função.
O ICMBio tem R$ 45 milhões reservados neste ano para essas indenizações. O valor é "substancialmente maior" do que o de anos anteriores, disse o órgão, que não especificou de quanto foi o montante em outros anos.

"Dupla" Tirso e Virso quer manter terra em floresta

DE BRASÍLIA

A polêmica mais recente em torno da ocupação de áreas protegidas atende pelos nomes de Tirso e Virso.
É como são conhecidos dois grileiros que tomaram para si uma área de 25 mil hectares na Flona (Floresta Nacional) do Jamanxim, na região sul do Pará.
A Flona, de 1,3 milhão de hectares, ficou conhecida como palco das operações de captura de "bois piratas" (criados em áreas de desmatamento ilegal) na gestão do ministro Carlos Minc.
Seus moradores exigem que a área da floresta seja reduzida em 90%. O restante seria colocado na categoria de APA (Área de Proteção Ambiental), que apesar do nome não protege muita coisa (Brasília é uma APA).
No mês passado, numa reunião com o ICMBio na cidade de Novo Progresso, vetaram a criação de conselho consultivo para a Flona e rejeitaram proposta de receber 37 mil hectares.
Dizem que há 6.000 pessoas morando na Flona, e que a unidade lhes foi imposta em 2006, sem consulta.
Contam, em seu pleito, com o apoio de parlamentares do Pará, como o senador Flexa Ribeiro (PSDB).
"Há má vontade do governo em responder o que eles colocam como sugestão", diz o senador. "O governo não cumpriu a Constituição. Tinha de fazer o levantamento das pessoas que estão lá . Querem expulsar gente que foi levada para lá há décadas, pelo próprio governo."
O ICMBio conta uma história diferente. "O primeiro censo que nós fizemos estimou 400 e poucas pessoas na Flona", disse Rômulo Mello. A contabilidade não é certa porque nem todos moram lá dentro. (CA e JCM)
Fonte: Folha de São Paulo, 13 mar. 2011-03-13 - Caderno Ciência
CLAUDIO ANGELO
JOÃO CARLOS MAGALHÃES
DE BRASÍLIA